por Cario Ricardo Bona Moreira para Bau de fragmentos │ Enero de 2013
Quando todos imaginavam que César Aira seria para sempre apenas um escritor, acabamos, para nossa surpresa, sendo informados de que este renomado novelista contemporâneo se transformou no chefe do tráfico de drogas e dos prostíbulos do bairro de Flores, em Buenos Aires. E se não bastasse isso, o autor de “La Liebre” aliou-se a chineses subversivos, bem como aos membros da “Logia Lautaro”, seita de negros decididos a se vingarem dos brancos argentinos depois de séculos de exploração. Como se não bastasse isso, Aira também se transformou no responsável por um sistema clandestino de produção de livros, contando com o apoio de uma legião de “ghostwriters”, com o objetivo de destruir a Argentina por meio da circulação de uma infinidade de novelas, já que a sua publicação provocaria uma saturação por “sobrecarga no sistema simbólico” . Se partirmos do pressuposto de que a Argentina é uma personagem de Facundo (Sarmiento), ou seja, uma ficção, implodir o sistema simbólico – literário – do país, equivaleria a destruí-lo. Agora sabemos como e porque o conspirador Aira escreve tanto. Mas calma! Tomemos cuidado com as especulações e com conclusões precipitadas. Isto é apenas literatura. As informações – fictícias – fazem parte apenas do enredo de “La última de César Aira”, primeiro romance de Ariel Idez, jovem escritor argentino, publicado pela promissora editora portenha Panico al Panico. Aira continua sendo Aira, no entanto, sua obra, com a publicação de Ariel, parece ganhar uma “dobra” – AIRA/ARIEL. É dela que pretendo tratar brevemente neste texto.Como se não bastasse isso…
Os livros de Aira, grosso modo, tendem, na medida em que seus enredos progridem, a caminhar, de um estado narrativo pautado pelo “comum”, pelo “qualquer”, pela “normalidade” a outro, cuja lógica é regida pelo “inusitado”, pelo “acaso”, pelo “acidente”, e pelo gradativo enlouquecimento dos acontecimentos e do pensamento que é pensado enquanto se narra. Suas histórias, geralmente, começam de forma aparentemente “simples”e “banal” para depois caminharem para o imprevisto, frustrando expectativas pré-moldadas pelos seus leitores. Basta lembrar de duas novelas: “Las Noches de Flores”, em que um casal de idosos decide trabalhar a pé na entrega de pizzas no bairro e acaba por se envolver em situações bastante absurdas. E “El Volante”, em que o escritor parte de uma propaganda para, então, migrar para o universo fabular – com direito a condessa e elefantes -, transformando todo o percurso narrativo em algo impensado no início da leitura.
As histórias que imaginamos ser contadas em ambos os livros na medida em que são narradas se mostram sempre imprevistas. Penso que este é um procedimento que se repete – com diferença – em quase todos os livros de César Aira. Aliás, o escritor explicita suas reflexões sobre a importância do “procedimento” para a sobrevivência do literário no seu conhecido ensaio que leva o título de “A Nova Escritura”. Vale relembrar o seu ponto de vista.
No ensaio, Aira apresenta o procedimento como uma ferramenta herdada das vanguardas capaz de reconstruir a radicalidade constitutiva da arte. Reconstruir a radicalidade da arte, para ele, significa, em tempos de esgotamento – sinônimo talvez de “civilização envelhecida” -, remontar às origens. O procedimento seria uma alternativa a outras por sua vez melancólicas, pautadas pelo interesse de seguir escrevendo a velha literatura ou de tentar heroicamente, como ele mesmo diz, “um ou dois passos adiante”. No contexto das vanguardas, terceira alternativa, o procedimento estaria ligado ao construtivismo, ao “ready-made”, à escrita automática, ao dodecafonismo, ao “cut-up”, ao acaso, etc, ou seja, a um “modo de fazer”, estando mais interessado na ação, no processo de confecção do que nos resultados: “Tem de se desinteressar dos resultados para permanecer sendo ação”. Colocar o “modo de fazer” na frente de o “que fazer”, ou dos resultados, é o que fez John Cage, em “Music of Changes”, peça descrita e analisada por Aira no texto. Não pretendo aqui esmiuçar a leitura do ensaio tendo em vista que meu objetivo é propor uma rápida leitura do romance “La última de César Aira”, de Ariel Idez.
Antes de seguirmos adiante, cumpre relembrar que Aira conclui que o procedimento, em geral, consiste em remontar às origens: “Daí que a arte que não utiliza de um procedimento, hoje em dia, não seja arte de verdade. Pois o que distingue a arte autêntica do mero uso da linguagem é justamente essa radicalidade”.
Produzir um procedimento (ou mimetizá-lo com criatividade) parece ser também o objetivo de Ariel Idez no romance que apresenta Aira como vilão. Enquanto Aira cria um procedimento pensando a literatura como uma espécie de absoluto – uma grande máquina de produzir imagens -, Ariel produz um procedimento pensando em desmontar a máquina de Aira. Desmontar, aqui, não significa destruir, mas apenas “brincar” e consequentemente fazer “conhecimento”, como aquelas crianças que desmontam seu brinquedo para divertir-se e também para conhecê-lo melhor.
O traçado narrativo do livro de Ariel é semelhante ao das novelas de Aira. É óbvia a aproximação. Ariel escreve um livro sobre Aira de forma aireana, o que demonstra que estamos diante de uma antropofagia, que aqui é também uma espécie de homenagem, mas não apenas. Resta-nos ler Aira a partir de Ariel, ou Ariel a partir de Aira.
As teorias contemporâneas talvez caracterizassem o livro de Ariel como um pastiche ou como uma paródia. Penso que talvez seja mais do que isso. Leonidas Lamborghini, em um dos textos que integram “El Riseñor”, interessado em discutir a relação de um texto com o seu Modelo, pergunta se não seria possível pensar na paródia como “impotência”, ou seja, como “la impossibilidad de emular al Modelo mediante otro procedimiento que no sea el burlesco imitativo”. Nesse sentido, a paródia é pensada como uma possibilidade que não necessariamente nega o Modelo: a paródia como um outro modelo. Se o livro de Ariel é uma paródia, devemos concordar que é uma paródia muito singular. Não existe para negar o modelo, nem simplesmente para homenageá-lo. Seu procedimento parece ser criado para pensar o Modelo, e consequentemente os rumos da literatura argentina. Assim como Aira, Ariel parece ser sério não sendo sério. Penso que também poderíamos ler o livro como um acerto de contas bem formulado do jovem escritor argentino com o vilão: “Eu também sei fazer”.
Vejamos brevemente o seu enredo. Depois de ficar sabendo que seu amigo Joaquín, dono de uma nova e pequena editora, publicará um livro inédito de Aira, Dante, o Anão Mais Sexy do Mundo – que além de passeador de cães é também um escritor frustrado -, decide investigar o motivo de Aira publicar tantas novelas, muitas delas ao mesmo tempo. O personagem, então, começa a se envolver em uma série de peripécias ao lado de personagens curiosos como Leandro Tiressi, um vendedor de livros roubados, Figueraz, vulgo Puto Nazi, uma espécie de jovem neo-nazista, o Guru Chitarroni, Leslie Chueng, um taiwanes peronista que é também um ninja, Maira, uma prostituta virgem, entre outros, com direito à participação especial de Arturo Carrera. Paremos por aqui. Convém não contar o resto da história para não estragar a surpresa daqueles que ainda não a leram.
Basta observar que Ariel, ao passo que ficcionaliza Aira, aproveita para “desmontar”a sua obra. Vejamos uma passagem em que o Guru Chitarroni observa: “Aira se limitó a crear el procedimiento, un gran invento, por otra parte, no le restemos mérito, y después se desentendió del asunto. Una vez construida la máquina, puede poner a cualquiera a operarla. Y el procedimiento está ahí, multiplicado en sus novelas, como el algoritmo al que todas ellas se sustraen, al alcance de todos. Cualquiera pude echarle mano y escribir una novela de Cesar Aira, de hecho…”. O argumento metaficcional é divertido e esclarecedor. Segundo o personagem, a maquinaria de Aira pode ser usada por qualquer um. De forma irônica é o que faz o próprio Ariel ao fazer procedimento de Aira, suplantando a mera cópia.
Se a ideia do procedimento, para Aira, é colocar em xeque a “miséria psicológica” a que chamamos de “talento”, “estilo”, “missão”, e “outras torturas mais”, entram em uma outra dimensão os conceitos de cópia, influência, modelo, nação, ou mesmo paródia. Nesse sentido, penso que o livro de Ariel Idez é além de divertido uma máquina que nos permite pensar nos rumos da literatura argentina. Dessa forma, o livro positivamente, é mais ambicioso do que parece. Se o resultado do livro é o apocalipse e a consequente morte da nação – ou seja, da própria idéia de missão ou autenticidade – cabe pensar na sobrevivência do literário, aquilo que suplanta a própria ideia de nação como um todo organizado, ou da boa literatura como surgida da originalidade. Assim como Aira, Ariel, redobrando as dobras de seu “Modelo”, pensa a literatura como um absoluto capaz de suplantar a própria ideia de nação. A nação, para Ariel, também é uma ficção, assim como a ficção é o centro de seu território. E Aira parece ser aquele responsável por apertar o botão da bomba.
Chama a atenção no livro a parceria de Aira com uma infinidade de ghostwriters subterrâneos responsáveis pela escrita de sua obra. Como poderia um escritor escrever tanto? Aliás, é esse questionamento que motiva o Anão Mais Sexy do Mundo a investigar o caso. Como escritor frustrado, aterrava-o o contraste com a sua situação atual, “saber que cada tarde mientras el cursor de su computadora titilaba al ritmo del interrogante, en el otro extremo de la ciudad, en un bar de Caballito o Flores, César Aira, ese demiurgo literario, escribía sin pausa su próxima novela”.
Para finalizar, gostaria de lembrar da novela “O Mago” (que misteriosamente me veio na lembrança), em que César Aira cria um personagem que é mágico de verdade, mas não possui imaginação. Ou seja, possui o procedimento, mas não consegue manejá-lo, lhe falta tato e talento para isso. Ao longo do livro, depois de concluir que a magia é a sua realidade e de suspeitar de que, por isso, a sua realidade é fruto de sua magia (iMAGInAção) – ou seja, invenção ou devaneio – o mago encontra um grupo de editores que o motivam a escrever livros em série. Se era mágico poderia fazer aparecer muitas e muitas obras. Seria um escritor reconhecido e ganharia dinheiro. Por que não pensara nisso antes? Seguramente, despertaria nos leitores a desconfiança por escrever tanto, ou “mejor, podía dejar que pensaran que usaba escritores fantasmas a sueldo”. Por trás, estaria apenas o mágico e o seu procedimento. Ao contrário do Mago, Aira e Ariel, dobra e redobra, parecem possuir não apenas o procedimento, mas também a imaginação. De que vale uma literatura sem ela?
caio ricardo bona moreira